O violão, as teias e a voz do João se bastavam; nada de vitrola, de orquestra, de piano do Tom
19 de Junho de 2022, 17:00
Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'
Um dia, um dia qualquer de 1958, uma aranha saiu do roda teto do quarto e entrou num violão. Fez teia, se aqueceu na madeira e escutou a batida suave junto a uma voz sussurrada, como ao pé de ouvido: “É amor / Hô-bá-lá-lá/ Hô-bá-lá-lá, uma canção/ Quem ouvir o Hô-bá-lá-lá/ Terá feliz o coração”. Não quis mais sair dali, ficou lá dentro, escondida e tecendo discretamente as suas teias.
Ainda naquele ano, saiu do apartamento, cruzou as ruas da Cinelândia e entrou no estúdio da Odeon. Escutou pela primeira vez orquestra, flauta, piano e percussão: “Vai minha tristeza/ E diz a ela/ Que sem ela não pode ser”. Quando as cordas do violão vibravam, os fios da teia balançavam, e a aranha se sentia numa rede, para lá e para cá. O curioso é que o balanço da teia emitia um som discreto, discreto porém suficiente para daquela caixa acústica sair uma batida diferente: “Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim/ Não quero mais desse negócio de você longe de mim”. A aranha estava longe das paredes de tijolos, mas vivendo onde queria. Ela estava fascinada por morar no violão do João Gilberto.
Passou mais de três anos se alimentando de pequenos mosquitos e de boa música. Nesse meio tempo, a aranha entrou novamente no estúdio para gravar “O amor, o Sorriso e a Flor” (1960), álbum que contém uma das suas músicas preferidas “Samba de uma Nota só”, e também o disco “João Gilberto” (1961), com a clássica faixa “Insensatez”. Até que chegou novembro de 1962. Sua morada móvel deixou as latitudes latinas e foi parar em Nova York. O pior para ela foi se alimentar no avião; o voo foi longo e não havia mosquitos em quantidade. Numa quarta-feira chuvosa, no dia 21 de novembro de 1962, a aranha subiu faminta no palco do Carnegie Hall. Eram três mil pessoas na casa; ela nunca havia se apresentado para um público tão grande. Na plateia, Miles Davis ouviu atentamente e desconfiou que aquela batida diferente do violão do João Gilberto guardava algum segredo, talvez nem o próprio João pressentia o que era.
Reclusa, a aranha se satisfazia sozinha, escutando o som das suas teias em contato com a vibração das cordas do violão. Era uma solidão que somava. Era uma reclusão que agregava algo no mundo interior da aranha. Preferia os acordes intimistas no quarto, do que as plateias barulhentas de três mil pessoas. Cada cochicho mínimo no teatro entrava na caixa de ressonância da sua morada como uma pontada dissonante, como algo irritante. O violão, as teias e a voz do João se bastavam. Nada de vitrola, de orquestra, de piano do Tom... Chegou uma altura que para ela muitos sons eram nada além de uma ilusão. E vivia no seu mundo fechado.
De teia em teia. De acorde em acorde. O tempo correu sem a aranha notar. Dentro do violão do João, o tempo era outro. E a aranha não notou o peso dos anos. Quando deu por si, estava longe do apartamento e distante da voz do João. Sem o João, a morada não tinha encanto. Ninguém tocava mais no violão, virou peça cultuada, de apreciação estática. A aranha continuou milagrosamente escondida, deprimida e milagrosamente escondida. Com suas teias paradas, sem emitir som.
Até que um dia, no ápice da melancolia, ela criou coragem e decidiu sair de dentro do violão. Livrou-se de ser esmagada pela sola do sapato de um fã do João, correu pelo rodapé do museu, subiu na parede, chegou até a luminosidade solar da janela e se atirou do sétimo andar. Caiu na contramão, nos trastes do meu violão. Rapidamente, suas oito patas se moveram pelas cordas de nylon e em seguida mergulhou na boca da caixa acústica. Desde então, o som que sai dele nunca mais foi o mesmo. Os amigos perguntam: “Como você aprendeu a tocar tão bem?” Eu me finjo de doido e pisco o olho, mirando as teias no interior do meu violão.