Nas noites de quinta-feira, diferentes gerações de viventes se reúnem para pisar forte no chão do bairro do Jaraguá em Maceió; cada pisada é como um toque de acupuntura, que libera um fluxo de energia acumulada nas pessoas e na cidade
05 de Junho de 2022, 16:47
Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'
— Maceió precisava desse lugar.
Foi o que disse Gabriel Antunes, quando pisou pela primeira vez no “Coco de Quinta”, no BarZarte. No fundo, eu e tantas outras pessoas da roda pensamos o mesmo desde o primeiro segundo em que entramos ali, apenas não verbalizamos como o amigo recém-chegado. Não se trata apenas de um pensamento, está mais para uma espécie de estrutura de sentimento, agora vocalizada.
No palco, Gabriela Costa cantava um coco matador: “Oi Tina, Tina, Tina/ Oi Tina, tá, tá/ Oi Tina, Tina, Tina/ Tina, morena passe bem”. E emendava com um “Morena da mata, o teu cabelo cheira/ Água de colônia, flor de laranjeira”. E cada vez que repetia o último verso ele ficava mais alongado. Mais lento, malicioso e alongado. De modo que os pandeiros, ganzás, caixa, triângulo e alfaia acompanhavam o movimento da voz: “Á-g-u-a de c-o-l-ô-n-i-a, f-l-o-r de l-a-r-a-n-j-e-i-r-a.” A voz ditava o ritmo. Os pés, cintura, braços, sorriso, olhos e suor de quem estava ali também faziam o mesmo movimento, lento e suave.
Depois entrou o coco sincopado e acelerado de Jacinto Silva na voz de Cosme Rogério. Cosme emenda com um trava-língua do “Mané mandou Maria, Matheus/ Murilo mandou o meu martelo no meia má/ Quando eu canto esse coco a minha língua treme/ Quem fizer outro coco em M, eu amarro e mando matar”. Dicção precisa e impressionante. O público, que é parte do palco, segue atento e suado. E canta alto quando ele embola com o famoso Mané Amaro e sua mulher que mora no Alto do Bode: “Ô, Amaro. Ô, Amaro/ Os cabelos do meu bem, do lado que eu passo a mão/ Dá um cacho soberano, que amarrou meu coração”.
Alvinho, que tem um sotaque quase pernambucano, sobe ao palco com barba, chapéu de cantador e sandália de couro e se mete a cantar cocos alagoanos: “O nosso Deus corrige o mundo/ Pelo seu dominamento, sei que a Terra gira, com o seu grande poder/ Grande poder, com o seu grande poder”. Prossegue mandando bem até o coco “acabar com toda má alegria”. Do Mestre Verdelinho, vai para outra clássica, agora de Mestra Hilda: “Meu vapor apitou, pediu mala/ O que é que tem esse povo que não fala?/ Meu vapor apitou, pediu mala”. Arrematando com um “Oia a masseira!/ Oia a masseira!” E os pés de quem está lá batem forte no chão: uma, duas, três vezes. E o passo se repete: “uma pisada, duas pisadas, três pisadas no chão”. Como os antigos, apilando o piso de barro das casas. Como os antigos dos quilombos e das moradas de engenho, mas agora num quilombismo urbano dentro do BarZarte.
Entre uma música e outra, Jota entrega a alfaia para Maia, pega no pandeiro e no fim segura o ritmo na caixa. O homem não se cansa. Está lá desde a primeira quinta com coco. Não falta uma. Outros artistas se ligaram na novidade do movimento espontâneo e foram chegando para engrossar o caldo. São muitos que começaram também a se apresentar e dar palinhas, nomes como Rogério Dyas e Fagner Dübrown, Jurandir Bozo, Pedro Vasconcellos, Renault Guimarães, Ana Gal, Jonathan e Jeferson, Wander Melo, Comunidade Azul, Tainan Canário, João Menezes, dentre outros que foram e ainda estão por chegar.
Uma das noites mais especiais foi quando Mestra Zeza do Coco subiu no palco. Era noite de céu estrelado. Era noite de coco sagrado e de coco profano. Ela subiu e deu aula de arte e sabedoria. Sabedoria popular. Narrou histórias e contou causos. Dançou, falou coisa séria e se divertiu cantando. Não é à toa que é reconhecida como Mestra, com “M” maiúsculo. Herdeira de Mestra Hilda, inspira um povo jovem que faz a cabeça dançando e cantando coco: “Fui à Serra da Barriga, falar com o Mestre Zumbi/ Pedi licença a ele para cantar o coco do Rio/ E Zumbi arrespondeu: não precisa me pedir/ Que esse coco é de Alagoas, nasceu e criou-se aqui/ Mestra Zeza, pode cantar”.
O “Coco de Quinta” não é um coco do folk-lore (sentido como tradição distante e apartada) e nem um coco estilizado. É um coco movimento. É movimento espontâneo que cresce a cada quinta. O palco é aberto. Os brincantes também são cantadores, e os cantadores também são brincantes. Aparece alguém que nunca foi visto por lá, não se sabe de onde veio e, de repente, não mais que de repente: manda brasa. Dançando com passos ousados na roda, pegando o pandeiro e puxando uma música que não havia sido ainda cantada.
Quando menos se espera, chega alguém com sapatilha de sapateador e começa a sapatear num tablado improvisado (feito de madeira de carretel). Seu nome é José Marcos, mais conhecido como Topete. É um artista completo: além de exímio dançarino, é o anfitrião da casa e o maestro das noites. Dança, canta, assobia, chupa cana e ainda cuida do caixa. Ele organiza o movimento e orienta o carnaval, de tal modo que é impossível voltar cedo. No BarZarte se chia com o pé até mais tarde, e se tem muito sono na sexta-feira de manhã...
Para quem ainda não foi, e não sabe onde é, seguem as instruções: sob o céu de lua e estrelas existe uma cidade. No centro dessa cidade há um bairro chamado Jaraguá. Entre os chacras da Praça Rayol, da Rua Sá e Albuquerque e da Avenida Comendador Leão, está o BarZarte. E lá, nas noites de quinta, diferentes gerações de viventes se reúnem para pisar forte no chão. Cada pisada é como um toque de acupuntura, que libera um fluxo de energia acumulada nas pessoas e na cidade. É que a cidade também tem terminações nervosas, articulações e tecidos (de natureza sociocultural e histórica). No quintal, com vista para o céu estrelado, a terra não é alheia e ninguém precisa pisar devagar. Por isso, vários pés batem forte no chão, fazendo um som estrondoso. Se o leitor ainda não sabe onde fica, não tem erro, é só seguir o som do trupé.