O recém-lançado EP da cantora, o homônimo 'Ana Gal', tem um fio condutor; esse fio se chama corpo — tanto o corpo de quem escuta e começa a dançar, quanto o corpo presente na sonoridade e nas letras
28 de Maio de 2022, 10:09
Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'
Letras e melodias criadas sem instrumentos. Cantadas somente na imaginação. No silêncio da imaginação de quem flutua sem sair do chão. Depois o quarto escuro, o computador e o fone de ouvido. Gravar a voz. Escutar samples, beats, riffs, linhas de contrabaixo, batuques em garrafas de vidro e tantos outros sons disponíveis em um banco de loops virtual repleto de gravações aleatórias. Ouvir, ouvir, selecionar, colar, experimentar, cortar, repetir em looping, descolar, gravar um riso e recompor até o som, inicialmente imaginário, ganhar corpo.
Foi assim que Ana Gal fez seu primeiro EP solo. E é surpreendente que tenha sido desse modo — sobretudo se considerarmos a sua trajetória de compositora e cantora multi-instrumentista, com a forte influência do jazz e da MPB no Divina Supernova (que caminha para o aguardado terceiro álbum) e do rock sessentista na extinta banda Expresso Monofônico. No seu trabalho solo, de pegada abertamente eletrônica, as letras não foram criadas para os loops, e os loops não foram criados para as letras. No entanto, casam como se fossem feitos um para o outro, formando um todo artístico coeso. E esta é a característica mais marcante da técnica de colagem quando bem executada: fundir elementos díspares compondo uma nova imagem. Foi o que ela fez em seu EP, inventou um som que é muito mais do que a soma de diferentes partes. Criou algo singular. Algo sui generis.
É curioso que Ana Gal tenha escolhido esse caminho de composição: letra e melodia com colagem de sons disponíveis em programas eletrônicos. Logo ela que toca flauta, violão, pandeiro, ukulelê e tantos outros instrumentos. Possivelmente, essa escolha seja um mistério inclusive para ela. Arrisco dizer, em tom completamente especulativo, que se deve ao prazer da descoberta. Não somente da descoberta de um novo modo de compor, mas principalmente da aventura de encontrar sons já existentes e que nem os músicos que os criaram sabiam que foram feitos para chegar até a música dela. De modo relativamente indireto, esse movimento inventivo motivado pelo prazer da descoberta transparece no verso de abertura do disco: “Eu me toco como mais ninguém/ Mas você pode me tocar também.” Ela poderia tocar os instrumentos e fazer com as próprias mãos as batidas e harmonias, mas preferiu se deliciar com os loops já existentes.
Outro ponto que merece destaque: o EP tem um fio condutor. E esse fio condutor se chama corpo. Tanto o corpo de quem escuta e começa a dançar, se balançar sutilmente ou freneticamente (levado por batidas, agudos provocantes e sintetizadores), quanto o corpo presente na sonoridade e nas letras. Como escreveu Mácleim, em sua bela resenha para o jornal O Dia, é um som voluptuoso. Essa palavra cai muito bem para descrever o EP: um disco voluptuoso.
Na primeira faixa, a batida crescente, o som de sintetizadores piscando como luz estroboscópica de boate e o pedido (ou ordem?) que dá título à música: “Me Toca”. Agudos quentes, imagens de bocas vermelhas e versos velozes e enigmáticos sobre cobra, saciedade e felicidade. A segunda música, “Na Vera", é um convite para novos gatilhos corpóreos, que vão da dança, com o grave embalando o ritmo, à delicadeza de fazer o corpo derreter como vela. No fim do convite do segundo ato, entra o riso, com malícia. No terceiro ato, chamado de “Delírio possível”, o início é a batera forte, o baixo e a voz de Ana Gal falando poeticamente, ao estilo de declamação na rua, sobre a cartografia do corpo de quem se deseja: “A correnteza da tua língua me puxando para a tua gravidade”. Depois guitarras e quebras rítmicas com distorções eletrônicas para fazer o corpo mexer. Para contorcer o tronco e a cabeça. “Ouço o toque da tua mão: subindo, subindo/ (...)/ Insano segredo, já não tenho medo de te provar e curtir”. Tudo isso com agudos no ponto certo: nas bordas do áspero e do liso.
A música que fecha o EP merece um parágrafo à parte. Ela começa com um som de caixinha de música que nos transporta de volta para a gênese: o retorno ao útero. Ainda que no ato final a dimensão erótica ceda lugar para um som contemplativo e reflexivo, o corpo continua lá. Inclusive no chamado para o mundo interior: “Inspirar, respirar, espairecer/ Enxergar o que não se vê”. É uma música com letra e sonoridade que ajudam a enfrentar os tempos sombrios, a fazer transformar a dor em flor. E ela seria bela tanto na antiguidade do Buda histórico (o nome da música é “Medytatyva”) quanto na velhice dos futuros bisnetos da atual geração de ouvintes do disco. É significativo que a faixa final de uma obra tão marcada pelos sons do corpo e dos desejos termine com a caixa de música uterina.
Além do som de estúdio, a novidade é que chegou tinindo, trincando, a banda Ana Gal & As Luxúrias, formada por mulheres: Júlia Soares na guitarra, Gabi Ramos no contrabaixo e Carol Vilela na bateria. A primeira apresentação ocorreu este mês na Casa Théo numa sexta-feira 13. O show começou com a execução voraz das quatro faixas do EP seguida de mais duas horas de músicas que seguem a mesma linha: corpo em movimento e não se assuste, pessoa, se eu te disser que a vida é boa!
No palco, as músicas do EP preservam a pegada eletrônica e dançante da versão original com o acréscimo do tempero novo trazido pela bateria e instrumentos de cordas elétricas das integrantes da banda. A performance ao vivo é eletrizante. A energia sonora, visual e sensorial da apresentação soa como um vapor lançado na atmosfera, de modo que qualquer ser que respira a sente e se mexe — inclusive uma lagartixa que estava na parede não parava de balançar a cabeça e a cauda. O público, que lotou a casa, se remexeu, transpirou, cantou e agora está se guardando para quando a próxima exibição chegar.
Quem vê na segunda-feira de manhã as pessoas paradas, distantes, caladas, não sabem que elas estão se guardando para quando o próximo espetáculo da Ana Gal & As Luxúrias chegar.
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Antes de concluir, é preciso ainda sublinhar que todo EP foi concebido, executado e produzido por Ana Gal. Ele pode ser escutado nas diferentes plataformas digitais. A próxima apresentação com a banda As Luxúrias ocorrerá em breve, no Arte Pajuçara — lugar símbolo de difusão artística e cultural da cidade, que atualmente está em campanha para permanecer de portas abertas. A data ainda será confirmada. Nesse mesmo evento, haverá o lançamento do espetáculo “Tubo de Ensaio” em formato audiovisual, na telona. Tal espetáculo, que é repleto de músicas autorais com execuções solo, é mais uma das múltiplas facetas criativas e performáticas de Ana Gal, uma artista que nunca quis pouco. E a noite promete, muito.