Como aquele cavalo-marinho foi parar ali? Eu não sabia dizer; ainda que morto, para mim, ele parecia vivo; talvez por carregar, além da forma singular, o mistério de uma história
22 de Maio de 2022, 10:44
Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'
Dentro de uma caixa, no fundo do antigo guarda-roupa, havia um cavalo-marinho. Estava seco, parado e sem vida, mas continuava lindo. Sua cor era branca-amarelada, suas curvas eram de não se ver em outros seres, sua textura era de xilogravura. Como aquele cavalo-marinho foi parar ali? Eu não sabia dizer. Ainda que morto, para mim, ele parecia vivo. Talvez por carregar, além da forma singular, o mistério de uma história. Era um cavalo-marinho antigo, desses que dificilmente se encontram agora no mar. Era um cavalo-marinho tão lindo que poderia ser pingente de colar, mas se teria pena de exibi-lo como rubi ou diamante, pois era um ser que outrora nadou, acasalou, teve filhos e lutou miudamente — com toda a força dos miúdos — pela sobrevivência. Talvez, justamente por isso, tenha ficado tanto tempo guardado e escondido numa caixa no fundo do guarda-roupa, pois se sentiria vergonha de andar com ele pendurado no pescoço.
Outra possibilidade é que ele estivesse dentro da caixa para esconder ou guardar um amor. Um amor de um moço pobre que um dia entregou o cavalo-marinho como uma joia para ela, Antônia. Na beira da praia de Pajuçara, as jangadas partem de velas abertas, outras ficam na areia, paradas, e eles se olham. Ela tem medo do olhar dele, acha-o ameaçador e engraçado. Ele se aproxima para falar do assobio do vento Nordeste que bate em novembro, e ele queria ser como o vento que toca o rosto e os lábios de Antônia. Ela ri tímida e irritada, parece estranho, porém o riso é pelo moço ser atraente e engraçado, enquanto a irritação é pelo medo que ele provoca, pelas suas intenções incertas. Ele tenta tocar nos cabelos de Antônia fingindo ser como o vento, e ela se esquiva como vela fechada de jangada parada.
Uma jangada parte, os pescadores a empurram por sobre toras de tronco de coqueiro. Os troncos rolam no chão, e a jangada segue para a lama, para o alto mar. Os pescadores vão iscar sardinhas vivas, pescadas na hora, e irão pegar dourados brilhantes, serras, xaréus e cavalas. No alto mar, avistarão a Serra da Barriga e, utilizando a memória fotográfica, saberão exatamente onde estão e para onde vão, igualzinho ao dia de ontem. O vento Nordeste, que empurra o camarão para praia, passa por eles, toca a areia fininha e alisa o rosto negro de Antônia. O moço queria ser o vento, não pelo camarão, pela areia ou pelas velas, mas para alisar o rosto de Antônia. Anos depois, ele escutaria algo sobre os ventos alísios e se lembraria desse dia, e saberia o porquê de o vento ter esse nome. Ela não saberia que ele pensou em ser vento, apenas guardaria o cavalo-marinho no fundo da caixa. E toda vez em que seus olhos fitassem o cavalo-marinho, lembraria dele como um amor não vivido.
***
O tempo correu. Antônia partiu. Os pescadores navegam hoje com celular e GPS. Quem me dera novamente abrir aquela caixa e rever o cavalo-marinho, assim eu lembraria melhor da lembrança deles. Das lembranças de Antônia e do moço sem nome.